quarta-feira, 9 de maio de 2018

INOCÊNCIAS




INOCÊNCIAS


Hoje, em vez da poesia, sinto a prosa,
Contadora de histórias de encantar,
Que a memória infantil soube guardar
Nos sonhos com imagens cor-de-rosa…

Ilusões inocentes no olhar,
Sem mácula da vida tenebrosa, 
Tão dura, complicada e pedregosa,
Tão difícil e má de suportar…

Hoje o meu pensamento mais profundo,
Afasta-me dos males deste mundo
E pinta-se do verde da esperança!...

Hoje vou descrever a Felicidade,
Numa infantil visão onde a amizade
Tem sentimentos puros de criança!...

J. M. Cabrita Neves

EM LOUVOR DAS CRIANÇAS


Em Louvor das Crianças


Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. 
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue. 
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus. 

Eugénio de Andrade, Rosto Precário