domingo, 3 de junho de 2018

A criança que fui chora na estrada




A criança que fui chora na estrada


I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar 
Um alto monte, de onde possa enfim 
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim, 
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar 
Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo. 
E a multidão engrossa, alheia a ver-me, 
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me, 
E, inúmero, prolixo, vou descendo 
Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.

 Fernando Pessoa, Poesias Inéditas